Hoje vou divagar a propósito de um jogo muito ao gosto popular, e que se bem me lembro se jogava em alguns bairros de Luanda nos tempos da minha infância e juventude. Também nas cidades portuguesas de Lisboa e Porto a caça da polícia às bancas ilegais deste jogo foi, num passado mais ou menos distante, recorrente.
Por Carlos Pinho (*)
No entanto, o local onde eu mais gostava de apreciar ao longe os magotes que se instalavam à volta da banca improvisada e transportável do artista que manipulava o jogo, era no Largo da Carioca, no Rio de Janeiro. Sempre me intrigou a obsessão das pessoas por tal jogo que, tal como era do conhecimento geral, não passava de uma estratégia de sacar dinheiro a papalvos. E então no Largo da Carioca o espectáculo vale a pena ser visto.
Daquilo que li, a versão básica do jogo usa um conjunto de cartas de jogar todas de cor preta, à excepção de uma única carta vermelha. O prestidigitador vai mudando rapidamente a posição das cartas e finalmente solicita a um dos presentes que adivinhe a posição da carta vermelha. A outra versão do jogo, quiçá a mais engraçada, é constituída por um conjunto de copos sendo que dentro de um deles existe uma pequena esfera. Os copos são colocados virados para baixo, num tampo de madeira, a banca. Com rápidos movimentos de mãos o banqueiro, perdão, o prestidigitador, movimenta rapidamente os copos passando a esfera de um para outro, numa sequência estonteante, até que pára tal rodopio e pergunta à assistência pelo local da esfera, que idealmente deve ser vermelha para ser mais atractiva.
O que a assistência na maioria dos casos não sabe é que na altura da pergunta sobre o paradeiro da vermelhinha, ela já não está lá escondida, porque o banqueiro, perdão o prestidigitador, a retirou sub-repticiamente. Logicamente ninguém acerta no local da vermelhinha. Na altura do banqueiro mostrar onde está na verdade a vermelhinha, nunca no local escolhido pelo pobre coitado que apostou algum dinheiro na sua escolha, novamente, de forma dissimulada, o banqueiro irá introduzi-la noutro copo. E assim o banqueiro vai ganhando a vida, com a ajuda de um ou dois compinchas que se misturam na assistência, e vão criando a entropia necessária à perturbação do discernimento dos assistentes.
Agora, há uma nova versão, tipicamente angolana, do jogo-da-vermelhinha. Esta versão tem características únicas que dizem bem do génio do povo angolano. O número de copos aumenta dos tradicionais três ou quatro e passa bem para além da meia dúzia. E pasme-se, a vermelhinha deixa de ser uma e passam a ser várias. E o nosso prestidigitador consegue, com uma habilidade e uma velocidade espantosas, rodar aqueles copos todos, juntamente com uma mão cheia de vermelhinhas e lá vai ele por lá fora, exonera, nomeia, volta a exonerar e a nomear, num corrupio de marimbondos, capaz de colocar a cabeça a andar à roda do mais incauto dos observadores.
E pasme-se ainda mais, pois nunca ninguém acerta no local da vermelhinha. Perdão, das vermelhinhas! Aliás, neste caso nem o próprio prestidigitador consegue acertar! E ainda mais espantoso, ao fim de uns poucos meses, constata-se que afinal não há vermelhinha nenhuma. Daí o facto de à primeira ninguém ter conseguido acertar! Constatação evidente “a posteriori”. Ninguém governa, ninguém faz nada de útil para a sociedade. Ah! Mas todos se governam. É uma questão de tempos verbais. Falta de atenção de quem observa e é fraco na conjugação. Recomenda-se que se volte aos bancos da escola.
E pronto, lá se segue mais uma rodada no carrossel, tal e qual nas feiras populares. E lá berra o altifalante:
– Vai começar uma nova viagem no carrossel da felicidade! Senhores clientes façam o favor de ocuparem os vossos lugares que o nosso cobrador passará por vós para receber o pagamento.
E neste mundo tão particular de Angola, lá se perfila mais uma vez a maribondagem, feita uma série de vermelhinhas, para entrar no carrossel, no corrupio estonteante dos copos virados, a ver em qual deles vai ficar, para, não como na canção do Chico Buarque em que tudo acabava na sexta-feira, mas passados meses, se constatar o que os observadores mais distantes já sabiam, nem sequer há vermelhinhas! É um eterno e mais que completo logro! Mas o povo, o eterno papalvo, lá continua numa imensa roda de expectativa e de esperança, suspirando por encontrar a vermelhinha que lhe traga algum alívio, uma visão de um futuro melhor.
E o nosso banqueiro, perdão, prestidigitador, também lá continua ciente da importância do seu papel. É dos poucos que ganha com o negócio. Ele e alguns comparsas que se misturam com a multidão ansiosa.
E a feira continua, e lá berra novamente o altifalante:
– Vai começar uma nova viagem no carrossel da felicidade. Senhores clientes façam o favor de ocuparem os vossos lugares que o nosso cobrador passará por vós para receber o pagamento.
E o povo lá vai pagando. Quando não é em dinheiro é em sangue, suor e lágrimas.
É que o carrossel do povo angolano é o Carrossel da Infelicidade!
(*) Professor da FEUP – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
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